Por Hamid Hajizadeh*
Em contraponto à visão de que os protestos do Irã tenham começado apenas pela questão do hijab obrigatório, esta análise aponta que o papel dos problemas de subsistência na insatisfação pública não pode ser ignorado.
O Sr. M. K. Bhadrakumar, ex-embaixador da Índia no Uzbequistão e na Turquia, escreveu um artigo sobre o ataque às instalações militares do Irã apresentando sua avaliação a respeito. Seu texto alega que esses ataques estão relacionados aos protestos internos do Irã apoiando sua continuidade, e afirma que a abordagem do Ocidente e especialmente de Israel ao enfrentar o Irã mudou. Bhadrakumar menciona sutilmente outra afirmação em seu artigo, a alegação de que a Ucrânia desempenhou um papel na formação desses ataques ou pelo menos os apoiou.
Este artigo é dedicado à crítica do artigo do Sr. Bhadrakumar.
O Sr. Bhadrakumar, um conhecido diplomata indiano aposentado que já escreveu muitos artigos sobre o Irã, afirmou que os recentes protestos internos do Irã foram criados por países estrangeiros, um movimento que não teve sucesso e que agora diminuiu. Por outro lado, aponta que Netanyahu, um belicista, chegou ao poder em Israel, portanto essas duas questões – o fracasso ocidental em criar protestos no Irã e a ascensão de um governo belicista em Israel – levaram Israel a recorrer a atos militares diretos. Em palavras mais simples, Israel, que não obteve resultados ao interferir nos protestos de rua no Irã, optou por ataques militares ao país depois que Netanyahu assumiu o cargo.
É estranho que esta análise do Sr. Bhadrakumar tenha sido levantada muitas vezes nas últimas semanas por um movimento radical também no Irã. Essas duas visões são tão parecidas que nos fazem questionar que a fonte de ambas talvez seja a mesma. Independentemente da origem dessa visão compartilhada, os seguintes pontos e consequências são concebíveis para essa análise.
A análise tenta mostrar que o atual governo do Irã tem um nível muito alto de apoio popular e que o que aconteceu nas ruas das cidades iranianas foi causado por inimigos estrangeiros, não pelo povo iraniano. Isto apesar do fato de que alguns políticos no Irã constantemente alertaram o governo de que o capital social governamental foi bastante reduzido e, mesmo em uma das declarações mais estranhas, o presidente do Parlamento iraniano, que é o apoiador do governo na situação atual, admitiu que a forma de governar deveria ser reformada. Foi por isso que o secretário do Supremo Conselho de Segurança Nacional do Irã realizou recentemente duas reuniões com alguns críticos, chamados de reformistas, a fim de preparar uma introdução para seu encontro direto com o líder do Irã.
A análise considera a diminuição dos protestos como uma prova da autoridade do regime iraniano porque afirma que os inimigos do Irã, apesar de sua presença direta nos protestos internos do país, não poderiam causar muitos distúrbios ao regime iraniano. Claro, o Irã é um país poderoso na região, mas a razão para a autoridade do Irã não é o atual abrandamento dos protestos de seu povo.
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O Sr. Bhadrakumar, como diplomata experiente, sabe que esta análise mostra indiretamente as condições do Irã em estado de guerra. Assim, o Irã tem o direito natural de se defender e essa defesa é considerada legítima, pois as condições são de guerra. Portanto, o mundo não pode ignorar esse direito, especialmente quando o Irã é atacado diretamente de várias formas. Por outro lado, defender o país contra o inimigo que possui o maior arsenal de armas nucleares da região também tem métodos próprios.
A análise acusa os manifestantes de cooperar e depender de Israel e dos EUA, considerados inimigos no sistema político iraniano, acusação esta que expõe os manifestantes a graves punições legais sob as leis iranianas. Na capa desta acusação, o espaço político pode ser mais fechado do que antes e os manifestantes serão punidos. Portanto, não está longe da expectativa de que os manifestantes, tendo em vista o alto custo do protesto, desistam de transferir suas críticas ao governo e passem a tolerar as condições existentes por enquanto.
A análise, que acredita que o hijab e os direitos humanos foram apenas uma desculpa para protestos e que as manifestações foram formadas com intervenção de países estrangeiros, deixa implícito que a situação dos direitos humanos no Irã não é preocupante. Além disso, também questiona a legitimidade da oposição à obrigatoriedade do hijab. O resultado desses dois pontos também é claro, uma justificativa para lidar duramente com os manifestantes, um confronto que, segundo especialistas, já provocou a morte de quase quinhentas pessoas e a detenção de quase vinte mil.
Essa análise apresenta uma abordagem equivocada do motivo dos protestos, e justifica a insistência no método atual ao invés de conscientizar o governo sobre as demandas da população. Enquanto isso, como resultado do possível descaso do governo com as demandas populares, a distância entre o povo e o governo aumenta a cada dia, e o governo iraniano perderá mais do que no passado a confiança pública, que é seu capital social. Encobrir e negar os protestos populares tem outra consequência importante: se as reivindicações não forem levadas em consideração, a população também deixará de manifestar suas reivindicações ao governo e passará a tolerar a situação. A situação é estável desde que a quantidade de problemas das pessoas não exceda sua tolerância, caso contrário, as pessoas que estão desapontadas com a melhora e chegaram a um beco sem saída irão para às ruas protestar e não poderão ser facilmente devolvidas a suas casas.
Ao mostrar motivos irrealistas para os protestos, a análise faz com que os principais motivos dos protestos sejam esquecidos e as causas da situação atual sejam deixadas de lado. Embora os slogans dos protestos fossem políticos visando principalmente o governo, e tenham começado com a questão do hijab obrigatório e a morte de uma das pessoas presas, o papel dos problemas de subsistência das pessoas na criação de insatisfação pública não pode ser ignorado. A situação econômica ruim do Irã nos últimos anos, especialmente neste momento em que a inflação anual está próxima de 50%, tornou a situação muito difícil para o povo e elevou a linha de pobreza. Alguns analistas estimam que pelo menos metade dos 85 milhões de habitantes do Irã vivem abaixo da linha da pobreza e lutam contra uma inflação que atingiu 40% para todos os bens.
Esta inflação é a mais alta desde 1994. Claro, dentro do Irã, partes do governo reconhecem a importância de prestar atenção às demandas populares. Por exemplo, foi por esse motivo que o presidente do presidium do parlamento iraniano declarou, após uma reunião do parlamento com o executivo: O parlamento e os funcionários do governo enfatizaram que a melhor maneira de lidar com os protestos e distúrbios e a melhor forma de alcançar a estabilidade do país é prestar atenção às demandas reais das pessoas, especialmente no campo da economia e subsistência.
A análise usa a descrição “colorida” para descrever as manifestações no Irã. Protestos e revoluções coloridas, como os que aconteceram na Ucrânia, Quirguistão, Geórgia e Iugoslávia, foram em sua maioria administrados por um fator estrangeiro, baseados em protestos relacionados à processos eleitorais fraudulentos e, eventualmente, levaram à mudança de governo.
Deste ponto de vista, o tipo de protesto no Irã é completamente diferente das revoluções coloridas porque não há nenhum elemento de gestão estrangeira nos protestos do Irã, e o motivo dos protestos não foi fraude eleitoral. Além disso, esses protestos não levaram a uma mudança de governo. Parece que o autor usa essa descrição com outro objetivo. Ele quer relacionar esse movimento ao Ocidente, afetado pelo incitamento e intervenção ocidental, como aconteceu em algumas revoluções coloridas.
Talvez o ponto mais importante na seção relacionada aos protestos do Irã no artigo do Sr. Bhadrakumar seja onde ele diz que os governos no Irã são eleitos pelo povo. Ele defende concretamente o nível de democracia no Irã e acusa os líderes de outros países, como os líderes do grupo G7, de não entenderem os motivos dos protestos e até mesmo rebater que as manifestações são uma questão comum e normal também em seus países.
Bhadrakumar não mencionou as estatísticas de participação popular nas recentes eleições iranianas e não as comparou com eleições semelhantes anteriores durante o governo da República Islâmica. Isso apesar do fato de que, de acordo com muitos especialistas no Irã, uma interpretação da constituição pelo Conselho Guardião da Constituição do Irã eliminou os reformistas, fortaleceu os fundamentalistas e moldou uma governança uniforme e coordenada no parlamento e executivo.
Essa crítica aponta justamente para a questão da democracia no Irã, afetada pelos resultados de uma interpretação.
Esta análise sutilmente acusa a Ucrânia de participar ou apoiar o ataque aos centros militares do Irã em Isfahan e ameaça a Ucrânia de uma fonte desconhecida no Irã. Existem duas opiniões no Irã sobre a guerra da Rússia com a Ucrânia. Uma, a visão de fundamentalistas próximos ao governo que acreditam que o ataque da Rússia à Ucrânia foi justificado. Parece que alguns defensores dessa visão, presentes nas instituições militares do Irã, desempenharam um papel importante no incentivo ao governo para venda de drones para a Rússia, embora isso possa ter sido acordado antes do início da guerra na Ucrânia. Seus defensores nas redes sociais geralmente cobrem as notícias relativas ao possível sucesso dos ataques de drones russos na Ucrânia. Em contraste com essa visão, os críticos também enfatizam a observância do princípio de neutralidade do Irã na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Eles se referem ao fato de que quase todos os países do mundo condenaram essa agressão ou permaneceram neutros. Mesmo muitos dos países aliados da Rússia não apoiaram a Rússia nas votações da ONU, e nenhum país concordou em apoiar a Rússia militarmente de forma oficial. Portanto, qualquer interferência na questão da assistência militar à Rússia é como cair em uma armadilha e, por isso, não se deve entrar no jogo errado da Rússia, porque isso acarretaria um alto custo para o Irã. Devemos lembrar que o próprio Irã é afetado por pesadas sanções.
Além da questão das raízes dos protestos no Irã, o artigo do Sr. Bhadrakumar também contém dois outros pontos significativos. Ele afirma que o motivo da oposição dos países ocidentais, e especialmente dos Estados Unidos, ao regime iraniano, sempre foi a questão do petróleo e do gás e, segundo Michel Foucault, os EUA nem ao menos dão ao Irã a mesma liberdade que deram ao Vietnã. Ele também cita o que considera ser a recente convergência do Irã e da Rússia no abastecimento mundial de energia. Em outro tópico, o autor aponta a troika de Astana como prova da importância do Irã na geopolítica da região e especialmente na Síria, e a menciona como o sucesso do Irã em estabelecer seu papel na Síria.
Esses dois tópicos são tão importantes e extensos que abordar cada um deles irá requerer outro artigo.